Total de visualizações de página


Tal qual uma matrioshka (boneca russa), vamos desvendando nossas porções. A cada novo tempo, uma nova aprendizagem. Agora é o momento de nos vermos como seres holísticos que têm: corpo, organismo, cognição (intelecto), inconsciente (desejo) e mente (consciência, espírito).

ANGELINI, Rossana Maia (2011)

“A falsa ciência cria os ateus, a verdadeira, faz o homem prostrar-se diante da divindade.”

VOLTAIRE (1694 -1778)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Artigo - O PROCESSO DE AUTORIA E CRIATIVIDADE NA EDUCAÇÃO ESPECIAL

O PROCESSO DE AUTORIA E CRIATIVIDADE NA EDUCAÇÃO ESPECIAL

ROSSANA APARECIDA VIEIRA MAIA ANGELINI


RESUMO



Nosso objetivo com esse trabalho é mostrar que a capacidade de desenvolvimento cognitivo-afetivo do jovem atendido na escola especial se dá a por meio de relações interpessoais, mediadas simbolicamente pelo professor e, a partir de situações de intersubjetividade, apresentam capacidade de autoria, de um pensar singular sobre o mundo. Dessa forma, partimos de uma prática educacional que considera o sujeito da aprendizagem ativo-interativo na construção de seu conhecimento. Apresentamos proposta de um trabalho prático na área de literatura, cuja finalidade foi a de desenvolver a autoria desses alunos e suas possibilidades de criação. Para tanto, consideramos esse sujeito, enquanto um sujeito cognoscente, capaz de ampliar seus conhecimentos e construir outros, desde que haja uma mediação afetiva-ativa por meio do professor.
Palavras-chave: Educação Especial; Comunicação e Expressão; Psicopedagogia.

ABSTRACT
Our objective with this work is to show the ability of cognition and affection to development of young cared in special school, that happen trough of inter personal relation mediate symbolically by teacher and situations of subjectivity showed an authorship capacity, to singular vision of the world. So, we are starting with education experience, which consider the interactive learner to build of self-knowledge. We are presenting the proposal of practice work in the subject of literature, which objective was the development of authorship, from the learner and your capability of creations. So that, considering the cognizant learner capable to enlarge your knowledge and build other, on condition that the mediation emotion active through teacher.
Key words:
 Special School; Communication and Expression; Psychopedagogy.

A Linguagem da Vida

Já pensou
Que nós somos iguais?

Não importa como nascemos.
O importante é que
Somos felizes...
                                     Íris Sznelwar

          Criar é essencial à natureza humana. Dentro desse princípio e de minha função – ser professora e psicopedagoga, atualmente com jovens atendidos na escola especial, soltei as amarras, mergulhando na grande aventura do processo de autoria e descobri muito cedo que, antes do professor ensinar, ele tem muito a aprender, a criar, desde que esteja aberto a uma postura de troca, a partir da qual todos têm algo a aprender.
          Considero a importância de organizar essas experiências, porque há uma carência muito grande de estratégias que sirvam como um despertar ao “fazer” do professor e do aluno no que se refere à Educação como um todo e, especificamente, no que se refere à Educação Especial, estamos nos referindo ao terreno da subjetividade, da autoria e da criatividade.
Todo e qualquer aluno, tenha ele um déficit orgânico ou não, traz riquíssimas experiências, quando solicitado a participar de seu processo formativo e educativo, apresentando muitos caminhos, por meio de brincadeiras, jogos vivenciados e renovados de acordo com suas necessidades. Assim, engajado no processo, o aprender torna-se agradável e rico a ambos: professor e aluno.
              Já há muito tempo, desenvolvo uma proposta que identifico como de autoria e criatividade junto aos alunos. A primeira experiência nasceu quando atuava no curso Magistério. Nessa época, desenvolvi trabalhos que visavam a produção de textos, concluindo com a criação de livros infanto-juvenis. Esse projeto teve início nas aulas de Literatura Infantil. Os alunos, futuros professores, puderam, então, vivenciar, pela primeira vez, o fazer literário e compreenderam o quão fundamental é a literatura, a autoria, a criatividade.
            O objetivo de se trabalhar o processo de criação com futuros professores do curso Magistério, se deu pelo fato de que o futuro professor pode se sentir capaz e consciente da importância da autoria à formação da criança. Posteriormente, o mesmo projeto foi levado a crianças do Ensino Fundamental na rede pública. Os alunos puderam vivenciar o processo de autoria, vencendo bloqueios, superando inseguranças quanto à escrita e mesmo quanto ao processo de ilustração. Esse fazer literário despertou a descoberta do gosto estético e, acima de tudo, despertou o prazer pela leitura.
          Mais tarde, esse projeto foi desenvolvido entre os alunos do Ensino Médio, no curso de redação. A possibilidade de vivenciarem a experiência da autoria foi fundamental para que o aluno assumisse o papel de autor de sua própria aprendizagem, colocando-o como um ser capaz de vencer desafios.
          O que pretendi com esse projeto que se iniciou no curso Magistério foi o de desenvolver um movimento para o processo de criação e autoria, começando junto do futuro professor que, mais tarde, iria lecionar para as crianças. A intenção foi a de fornecer subsídios para que, futuramente, pudessem utilizar em suas aulas os recursos estéticos e lúdicos da literatura, o que proporcionaria condições para que o futuro professor, depois de vivenciar o processo de autoria, levasse esse projeto às crianças que, além de desenvolverem sua autoria e criatividade, estariam, concomitantemente, realizando fundamentais progressos em seu processo de leitura e escrita.         
          Hoje atuando na Educação Especial, o movimento do professor investigador, mediador, aflora e cria as mesmas oportunidades para esses jovens especialmente, humanos, desejantes, apaixonados, angustiados como qualquer outro jovem. Nasce novamente a autoria do processo de poder possibilitar a esses jovens uma fala diferente, uma fala em que possam expressar seus sentimentos e liberar sua imaginação.
Portanto, na perspectiva de Vygotsky, construir conhecimentos implica numa ação partilhada, já que é através dos outros que as relações entre sujeito e objeto de conhecimentos são estabelecidas. O paradigma esboçado sugere, assim, um redimensionamento do valor das interações sociais (entre os alunos e o professor e entre as crianças) no contexto escolar. Essas passam a ser entendidas como condição necessária para a produção de conhecimentos por parte dos alunos, particularmente aquelas que permitam o diálogo, a cooperação e troca de informações mútuas, o confronto de pontos de vista divergentes e que implicam na divisão de tarefas onde cada um tem uma responsabilidade que, somadas, resultarão no alcance de um objetivo comum, como também promovê-las no cotidiano das salas de aula. (...) Em síntese, uma prática escolar baseada nesses princípios deverá necessariamente considerar o sujeito ativo (e interativo) no seu processo de conhecimento, já que ele não é visto como aquele que recebe passivamente as informações do   exterior. (REGO, 1998, p. 110)

        Preocupada não apenas com a leitura e escrita do aluno, surge a necessidade de vê-lo como um ser realizador, capaz de se desenvolver, sonhar, criar... Assim, acreditando e depositando atenção no potencial criativo de cada aluno, nasceu Buquê, Aroma de Poesia, livro de poesias dos alunos da escola Trilha que atende jovens com deficiência mental. É da riqueza dos sentimentos desses alunos que nasce esse trabalho inovador, que dá a possibilidade do aluno ressignificar-se no contexto sócio-cultural em que vive, enquanto um jovem produtor das letras, de uma escrita, de um movimento poético.
         Buscamos um caminho para desenvolver a autoria entre nossos alunos e por meio da poesia nasceu o fazer literário e o sujeito desse processo.

Por que criar?

          Criar é evoluir, é renovar o espírito, é o prazer que há em se superar, é o desafio de sair da condição passiva para a ativa, é poder modificar, é desenvolver técnicas, meios para alçar o desconhecido, é “abrir” a mente para a reflexão... É ousar.
           Em nosso processo educacional, hoje se faz necessário despertar no aluno suas potencialidades para a área da pesquisa, da criação, da invenção. Todos os jovens têm direito à criação, uma forma de possibilitar a reflexão e a elaboração de situações vivenciadas dentro de um contexto sócio-histórico.
          Percebemos que essa conquista deve ser desenvolvida em todo e qualquer espaço educativo; pois é nele que o aluno passa a maior parte de seu tempo, então, por que não explorarmos sua imaginação? Os jovens, as crianças com deficiência mental ou não, têm direito à sua subjetividade, a serem olhados como seres ativos, engajados no processo, desde que possam ter oportunidades de mostrarem o que podem criar, segundo suas vivências e conhecimento. Dessa forma, percebermos, que reside em cada um, à sua maneira, uma veia artística que requer ser valorizada, e o papel do professor é o de orientar, ajudar o aluno no seu processo criador, nunca o subestimando.
           Em momento algum se pode esquecer que a afetividade, por exemplo, é a energética do comportamento e que o aluno deficiente mental se esforça em inventar estratégias de resolução de problemas quando sua motivação e necessidades são consideradas. A ativação do funcionamento intelectual depende, pois, de como o interesse do sujeito com deficiência mental foi despertado. (MANTOAN, 2000, p. 63,64)
          O professor se sentindo capaz de criar e consciente da importância dos benefícios que o processo criador atribui à formação da criança, do adolescente, terá condições de oferecer oportunidades para que o aluno dê asas à imaginação, desenvolvendo e despertando sua curiosidade para a realidade que o cerca.
          Nesse sentido, o fazer literário pode ser muito bem explorado, desde os primeiros anos escolares, o que despertará a criança e o jovem para o caráter socializante da literatura, uma vez que se estabelece pelo texto uma ponte de comunicação: autor-leitor. Então, por que não oferecer ao aluno a possibilidade de se posicionar como autor e desenvolver seu livro, nele recriar sua realidade, seus anseios e, por meio de sua linguagem, descobrir seu gosto estético? Partindo desse movimento, estaremos cultivando a linguagem que enseja ao aluno o contato coerente com seus semelhantes (comunicação) e a manifestação harmônica de sua personalidade, nos aspectos físicos, psíquico e espiritual (expressão). Ainda estaríamos enfatizando a importância da língua portuguesa como expressão de nossa cultura, capacitando o aluno ao desenvolvimento de sua comunicação verbal ou não-verbal, para torná-lo agente na comunidade. Motivado se interessará pelas manifestações culturais e artísticas; desenvolverá sua capacidade de observação, seu pensamento reflexivo. Socializará seu trabalho: lerá com prazer e assumirá a autoria de sua produção.
        ... oferecendo ao deficiente mental condições de acesso a conhecimentos e a modos de raciocinar superiores, que lhes são extremamente úteis em sua adaptação e integração social. É preciso atuar permanentemente, pois é em conseqüência de uma solicitação constante que o deficiente mental conseguirá chegar até os limites de sua capacidade intelectual. (MANTOAN, 2000, p.63)
          Faz-se preciso considerar esse sujeito enquanto um sujeito cognoscente, que tem um conhecimento de seu dia-a-dia, dos fatos do mundo, de seu movimento dual frente à realidade de dentro para fora e de fora para dentro, movimento que lhe permite compreender seus processos internos. Nesse sentido, dentro de uma abordagem vygotskiana, trabalhamos dentro do conceito da Zona de Desenvolvimento Proximal, o que permite estimular processos internos.
          A qualidade do trabalho pedagógico está associada, nessa abordagem, à capacidade de promoção de avanços no desenvolvimento do aluno. Conforme abordamos anteriormente, podemos encontrar o fundamento dessa posição no conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal que descreve o “espaço” entre as conquistas já adquiridas pela criança (aquilo que ela já sabe, que é capaz de desempenhar sozinha) e aquelas que, para se efetivar, dependem da participação de elementos mais capazes (aquilo que a criança tem a competência de saber ou de desempenhar somente com a colaboração de outros sujeitos). Esse princípio desestabiliza algumas crenças bastante cristalizadas no âmbito pedagógico. (REGO,1998, p.106)
          Durante o processo de criação, destacamos que os questionamentos suscitados proporcionaram ao sujeito o despertar de sua curiosidade, bem como maior sintonia com a realidade social e, por meio da fala, o mais importante instrumento cultural, têm a possibilidade de desenvolverem-se culturalmente.          Para Vygotsky, o desenvolvimento cultural só é possível pelo domínio dos meios culturais externos, entre eles, a fala e a escrita, o que leva o sujeito ao desenvolvimento de suas funções psicológicas superiores. Por isso, pensamos na importância dos alunos externarem seus pensamentos por meio da leitura, reflexão e discussão sobre textos de diferentes gêneros literários: poesias, narrativas, crônicas, etc, o que provocou novos questionamentos e a ampliação de um pensar.
          Vygotsky concluiu que os deficientes mentais encontraram sua “fonte viva de desenvolvimento” em ações recíprocas sociais com as outras pessoas que estejam em um nível superior a eles próprios. “Essa diversidade de níveis intelectuais constitui uma condição importante da atividade coletiva”, concluiu (1931f, pp. 7-9). Esta idéia antecipa o conceito de zona de desenvolvimento proximal da forma como ele é tradicionalmente compreendido. (VALSINER & VEER, 1996, p. 88)
          Nesse sentido, buscamos um caminho para que esses jovens pudessem ultrapassar os muros da escola especial e integrarem-se o mais possível na sociedadde, porque, de fato, todos os jovens, sem exceção, querem ser sujeitos ativos na sociedade e viverem como outra pessoa qualquer. 

A Poesia – uma manifestação da subjetividade

          Envolver o aluno no processo criador é essencial, enveredamos pelo caminho da literatura oral, a primeira manifestação artística do homem. Dessa forma, pensamos na poesia, como possibilitadora de um pensar o mundo e trazer à tona a magia das palavras. Inspiramo-nos no movimento dos poetas da Idade Média, nos Trovadores que falavam suas poesias, nascidas de um sentimento puro e sublime e pelas mãos do copista, nascia a transcrição dos textos.
 Quase todas as literaturas se iniciam por obras em verso. Exceptuando as novas nacionalidades resultantes da emigração de europeus a partir do século XVI, a poesia surge mais cedo do que a prosa literária. Não é fácil explicar este fato: nas civilizações do passado, a mais corrente forma de comunicação e de transmissão da obra literária, mas sim a oral. Antes de se fixarem no bronze, na pedra, no papiro, no papel ou no pergaminho, as histórias, as narrativas, e até os códigos morais e jurídicos gravam-se na memória dos ouvintes; e havia artistas que se encarregavam de as divulgar, os aedos, os rapsodos entre os Gregos, os bardos entre os Celtas, os jograis entre os povos românicos medievais. (...) Vestígios desta literatura oral são ainda hoje os provérbios que, como facilmente se verifica, obedecem a ritmos ou recorrências sónicas de fácil fixação. As literaturas românicas medievais nasceram, como já notamos, da literatura oral, cujos pricipais agentes eram os jograis, também chamados segréis na Península, embora, por via clerical, desde logo assimilem certos temas e lugares-comuns retóricos de tradição greco-romana. ( SARAIVA & LOPES, 1976, p. 43)
          É esse movimento que nos motiva e nos inspira a colher oralmente a poesia de cada aluno. Tal qual, em tempos remotos, nasce a poesia, cujo tema é o amor, um tema intimista e sentimental, uma poesia lírica que emerge em sua expressão mais primitiva e espontânea. Nasce o processo artístico, as relações de intersubjetividade.
Ao tomar posse do material cultural, o indivíduo o torna seu, passando autilizá-lo como instrumento pessoal de pensamento e ação no mundo. Neste sentido, o processo de internalização, que corresponde, como vimos, à própria formação da consciência, é também um processo de constituição da subjetividade a partir de situações de intersubjetividade. A passagem do nível interpsicológico envolve, assim, as relações interpessoais densas, mediadas simbolicamente, e não trocas mecânicas limitadas a uma patamar meramente intelectual. Envolve também a construção de sujeitos absolutamente únicos, com trajetórias pessoais singulares experiências particulares em sua relação com o mundo e, fundamentalmente, com as outras pessoas. (OLIVEIRA, 1992, p. 80)
          Trabalhar com a poesia nos dá a possibilidade de entrar num mundo recôndito, no mundo das emoções. A poesia evoca os sentimentos e permite que possamos compreendê-los. São imagens, sons, cores e ritmos que nos fazem entrar na dimensão dos afetos e das emoções.
          O material da poesia: os jogos de palavras, a linguagem figurada funcionam como caminho para possibilitar a reflexão e a reorganização dos sentimentos, por meio da linguagem e é por meio da palavra oral e/ou escrita que poderemos estar em contato com um mundo intrasubjetivo, para então, encontrarmos o ponto de equilíbrio entre o sujeito interno e o sujeito social, uma mediação que o professor poderá fazer.
           Para Vygotsky, processos de internalização são processos que envolvem uma mediação simbólica, cujo motor está na afetividade. É por meio de uma mediação afetiva ativa que poderemos motivar e envolver o sujeito em situações que provoquem sua atividade intelectual. Nesse sentido, o importante nesse processo é o como despertar o sujeito e seu interesse para a atividade proposta. Pensamos o sujeito com deficiência mental como um sujeito epistêmico, capaz de criar, pensar e construir conhecimento.
          Por meio desse trabalho, podemos promover avanços quanto ao desenvolvimento do aluno, considerando o sujeito ativo e interativo no processo da construção de seu conhecimento. Buscamos uma prática que valoriza o sujeito e suas possibilidades, por meio do diálogo, da cooperação e da troca de saberes. O aluno necessita ter a palavra, com ela sonhar e viabilizar suas vontades, ou seja, sentir o processo de autoria.        
          A poesia a ser apresentada é uma mostra do trabalho realizado. Ela nasce oralmente, a partir do letramento de um dos alunos que pensou e verbalizou sua relação de amizade com os colegas, o que resultou num texto coerente, coeso e, acima de tudo verdadeiro.
         Sintam por meio desses versos o perfume, o gosto, o ritmo, a maciez, o som das palavras que alçaram vôos e se mostram aqui, um jeito de poetar:


Encontro

Encontro amigos
em diferentes lugares.
Conversamos...
Passeamos...
Amigos,
pessoas de bem.
Amigos de todas as horas.
Amigo na hora da tristeza,
na hora da alegria,
na hora da solidão.
Amigo é encontro!
                  (Fábio)
   
          A poesia tem o poder de alcançar a mais profunda das emoções, ajudando a maneira como nos sentimos em relação ao mundo e a nós mesmos.
  
Autoria – um processo
O homem é o seu próprio livro de estudo.
Basta ir virando as páginas, até encontrarem o autor.
                                        (LELOUP, 2003)
         
          Consideramos importante falar sobre a questão da autoria e letramento com que vamos nos deparar, porque muitos de nossos alunos, apesar de não estarem alfabetizados, possuem um pensamento alfabetizado, se assim podemos dizer, isto é, são pessoas com capacidade de discurso, porém ainda não têm uma escrita competente. Esse aspecto nos mostra que esses alunos são capazes de verbalizar pensamentos muito elaborados e esse movimento permitiu que pensássemos no processo de autoria desses jovens, visto que pertencem a um meio letrado, que lhes proporciona uma diversidade de conhecimentos.
         ...os não alfabetizados têm capacidade para descentrar seu raciocínio e resolver conflitos e contradições que se estabelecem no plano da dialogia. O que se percebe, pesquisando esses momentos, é que existem planos de referência delimitados por esses indivíduos, e que eles estão comparando esses planos para decidir em qual deles irão buscar as evidências necessárias para resolver um problema proposto. Esses fatos representam, então, contra-argumentos à afirmativa segundo a qual não-alfabetizados não raciocinam logicamente, não descentram, na solucionam problemas... A explicação, então, não está em ser, ou não, alfabetizado enquanto indivíduo. Está sim, em ser, ou não, letrada a sociedade na qual esses indivíduos vivem. Mais que isso: está na sotisficação das comunicações, dos modos de produção, das demandas cognitivas pelas quais passa uma sociedade como um todo quando se torna letrada, e que irão inevitavelmente influenciar aqueles que nela vivem, alfabetizados ou não. (TIFOUNI, 1995, p. 26, 27)
          Nesse sentido, o critério de autoria, como pensa Tifouni, tem a ver com o sujeito do discurso, pois é ele quem tece o fio do discurso, é ele quem estrutura seu discurso (oral ou escrito). Então, o que consideramos na produção de nossos alunos é um discurso oral que vem penetrado por uma escrita e que o coloca no terreno da autoria, um movimento marcado pela coesão das idéias e um domínio do intradiscurso.
          Assim, sentimos a necessidade de mostrar com esse trabalho que o processo de autoria pode se estender a todo e qualquer produtor de linguagem, saiba ele escrever ou não. Esse movimento é o que nos leva a pensar no movimento dos poetas da poesia da Antigüidade, da poesia da Idade Média, quando imperava a oralidade, a autoria, o letramento das sociedades em seus diferentes contextos histórico-social.
          Aqui, pretendemos relatar como nasceu o nosso trabalho: a produção de um livro de poesias intitulado “Buquê – Aroma de Poesia”. O livro nasceu do ofício de poetar, um ofício dos poetas medievais. Nasceu do processo de autoria de cada jovem que pôde nos encantar com sua sensibilidade e sabedoria. A antologia nasce de uma mediação afetiva ativa que lida com a potencialidade de cada aluno. Estamos em outra ordem dos movimentos, em que todos somos sujeitos capazes de criar.
          A palavra brotou em cada um de forma espontânea, viva, clamando por um espaço. Tomar as palavras nas mãos e alçar vôo ao desconhecido, levou-nos à conquista desse processo. Desenvolvemos oportunidades para que os jovens pudessem criar, segundo suas experiências e conhecimento. Percebemos nesse processo que reside em cada um, à sua maneira, uma veia artística, valorizada no percurso de nosso trabalho, eis aqui a mediação afetiva ativa.
           Ter a palavra na fala, nas mãos é poder tomar as rédeas da vida e ver em cada jovem um ser realizador, capaz de sonhar, criar, conquistar... Quando acreditamos que algo é verdadeiro, ativamos nossa energia, nossa consciência naquela direção. Esse é o comando que damos ao universo, a parte essencial do processo de criação. O pensamento aparece, as palavras vestem-no com sua maior simplicidade e na simplicidade do arranjo das palavras, nasce o mais profundo sentimento. Nasce a vontade de transformar, possibilitar a experiência da autoria. Nasce o envolvimento, o desafio – e a palavra atua em cada um. Nasce a autoria de uma realidade, de expectativas, de anseios, de uma forma poética, uma “poesia” que a vida ensina.
          Nasceu a troca, o laço entre professores e alunos. Nasceu o processo de criação por meio de leituras de textos, bate-papo, momentos em que cada um expressou sua idéia, sua palavra. Nasceu a mediação afetiva ativa que compreende o outro. Transformamos desejo em linguagem, e o afeto foi a via de acesso para esse processo.
          Esse percurso foi muito significativo para o grupo que percebeu que escrever, organizar as idéias é um jogo, um brincar com as palavras. Desse brincar nasceu a criatividade, nasceu um fazer. Olhamos para a capacidade, para as possibilidades do aluno, enquanto sujeito, o que propiciou sua expressão e a conquista de um processo de autoria, assinalado pelo desejo de se mostrar a partir de sua fala. Buscamos o espaço potencial, o movimento lúdico, em que a fala foi ressignificada, como caminho para a expressão de um pensamento criativo.
          Dessa forma, cada aluno vestiu seu pensamento, escolheu um assunto, um tema e sobre isso pensou, refletiu individualmente ou num grupo. A mediação foi feita pelo professor que colheu as palavras, as falas de cada aluno e as registrou como nasciam. As perguntas que o professor fazia, nasciam das respostas que eram faladas e nessa dança, nascia a poesia.
          Realizando essa atividade, percebemos que perguntar sobre as coisas mais simples da vida desenvolve uma reflexão profunda. Essa dinâmica possibilitou ao aluno estar no mundo como sujeito, um ser ativo no processo de autoria: a palavra permitiu a constituição de um sujeito autor.
          Esse trabalho proporcionou a todos grande envolvimento, é a palavra de cada aluno que fica estampada no papel, suas idéias, sua sabedoria frente a um mundo que pode ser falado, pensado e escrito. Nesse sentido, o processo de autoria se configura e compartilha esses pensares. O trabalho com poesias permitiu o espaço do brincar, um espaço lúdico, em que cada um pôde se autorizar a ser autor de um pensamento, cresceu o sujeito. O espaço da escola tornou-se o espaço do sonho, um espaço desejante em que a criatividade e a autoria se manifestaram.
          Os deficientes possuem as mesmas necessidades de todas as outras pessoas, respondem ao tratamento que recebem daqueles com quem interagem de modo diferenciado – variam muito as suas atitudes, de acordo com as solicitações que recebem do meio. Essas pessoas, como as normais, desejam ser respeitadas, livres e independentes e cabe a nós oferecer-lhes oportunidades em que  tenham de decidir, optar, escolher, de acordo com seus interesses, necessidades, inclinações. Elas querem ser responsáveis por seus atos e suas vidas e aspiram poder competir com os demais, mas na garantia de que não serão logradas pela superproteção ou pela desvalorização prévia de suas capacidades e produtividade. (MANTOAN, 2000, p. 68)        
         
          A linguagem nasceu, deu forma ao pensamento. Nasceu o sujeito, as relações que pode estabelecer com o outro e com sua linguagem. Somos seres de pensamento e pensamento é energia. Dessa energia nasceu a linguagem, como forma de manifestação. Nasceu a consciência, uma atitude interna de comprometimento coma vida, com o respeito e afeto pelo outro. Buscamos relações humanizadoras. Estamos no terreno da consciência. A cada dia, vivenciamos novas experiências e novas situações, o que nos permitiu entrar em sintonia com nosso ser supremo – um eu universal que nos unifica, enquanto seres humanos, dotados de amor.

          Considerações finais

          Nesse sentido segue nosso trabalho, procurando desenvolver a competência de nossos alunos, colocá-los no lugar do saber, no lugar do sujeito. Esse movimento faz uma diferença total e nos coloca como seres humanos dotados de diferenças, sim, mas com capacidades e competências de autoria, sujeitos de nossa história, de nossa vida. Isso é o que motiva toda e qualquer pessoa, seja aluno ou não, seja de onde for, é o que possibilita sair da mesmice, para se aventurar, ousar no mundo. Como um grupo de alunos colocou: “Esse é o nosso primeiro livro de poesias!” Palavras que sorriram, que encantaram e que mudaram o lugar desses alunos, tão capazes!
                  Onde e quando desenvolver esse trabalho? No Ensino Fundamental, no Ensino Médio, no Terceiro Grau? Com que tipo de aluno? Não há tempo prefixado nem determinado tipo de aluno. Todos podem, e o professor é a chave para esse magnífico processo da cri-ação. Como disse um dos alunos: “Não são apenas as outras pessoas que podem criar um livro, eu também posso!”

             Referências Bibliográficas

ANGELINI, Rossana Ap. V. Maia Angelini. O Processo Criador em Literatura Infantil. São Paulo: Letras e Letras, 1991.
DANIELS, Harry (org.) Vygotsky em Foco: Pressupostos e Desdobramentos. São Paulo: Papirus, 1994.
MANTOAN, Maria Teresa Égler. Ser ou Estar: eis a questão – Explicando o Déficit Intelectual. Rio de Janeiro: WVA, 2000.
REGO, Teresa Cristina. Vygotsky – Uma Prespectiva Histórico-Cultural da Educação. 5ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
SARAIVA, Antônio José e LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. 9ª ed. Portugal: Porto Editora, 1976.
TAILLE, Yves De La; OLIVEIRA, Marta Kohl; DANTAS, Heloísa. Piaget, Vygotsky, Wallon. São Paulo: Summus Editorial, 1992.
TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e Alfabetização. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1997.
VEER, René Van Der  & VALSINER, Jaan.  Vygotsky – uma síntese. 4ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
Vigottsky,  L. S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Nenhum comentário:

Postar um comentário